sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Considerações sobre a trilogia "Jogos Vorazes", de Suzanne Collins

Terminei agora há pouco a leitura da trilogia "Jogos Vorazes", de Suzanne Collins. Levei apenas vinte dias para terminar os três volumes de cerca de 400 páginas cada um, mesmo trabalhando durante boa parte desse período. Isso significa que realmente gostei bastante da história. Criativa e repleta de deliciosos momentos de suspense. É claro que também tem algumas partes monótonas, sobretudo no segundo volume, onde a autora exagera em descrições de eventos não muito relevantes. Mas, no geral, a trilogia é muito interessante.

Mas o comentário que eu gostaria de fazer não é sobre o enredo em si, mas sobre alguns aspectos dele que me chamaram a atenção. Toda a história se desenrola em um país fictício chamado Panem, que se localiza no que antes (talvez séculos antes) eram os Estados Unidos. É o regime de governo desse país que me impressiona, pois ele apresenta vários aspectos de um estado socialista. Não me refiro a um socialismo marxista, mas parecido em muitos pontos, já que os mais diversos tipos de socialismos conservam bases comuns. Em outras palavras, não deixam de ser socialismos.

Não penso que a autora tenho escrito a história com o intuito de mostrar ao leitor um país socialista. Na verdade, eu tenho quase certeza que ela nem por um momento pensou nisso e este não é, definitivamente, o foco do seu livro. Mas é inevitável juntar os pontos e perceber o que talvez ela mesma não tenha percebido.

Para começar, todas as grandes empresas, setores e serviços são controlados pelo Estado. Isso não é dito explicitamente nos livros, mas pode ser inferido em vários trechos. Por exemplo, a protagonista da série, Katniss Everdeen, embora fosse muito pobre, como a maioria dos habitantes de seu distrito, frequentava a mesma escola que a filha do prefeito, de condição estável. O livro também parece indicar que todas as crianças de cada distrito de Panem, sem exceção, vão à escola e lá são doutrinadas pelo Estado. Ou seja, só podem ser escolas estatais.

A economia parece mesmo ser extremamente planificada e regulada pelo governo. Cada um dos doze distritos trabalha em algo específico para abastecer o país. No distrito 12, de Katniss, é o carvão. O distrito 11 fica com a agricultura. E por aí vai. E o governo tem total poder para fazer a distribuição da produção e para controlar todo o setor. Posso citar dois trechos que me veem a mente agora que deixam isso implícito. Um em que Rue, uma das personagens, afirma que no distrito 11 não se tem permissão para comer o que se colhe na lavoura (sob pena de morte). Outro em que Katniss, que narra o livro, comenta que a Capital fechou as minas de carvão do 12 por duas semanas. Há outros.

O sistema de televisão também é estatal. Toda a programação está a cargo da Capital e eles utilizam este recurso vastamente como modo de controlar a população suprimindo muitas informações, promovendo ordem, fazendo propagandas em prol do regime e espalhando notícias falsas.

Não há qualquer menção a grandes empresários. Se eles existem, ganham seus altos lucros permitindo que o governo tenha total controle sobre as empresas. Em outras palavras, grandes empresários e Estado estão bem casadinhos, de forma que não é possível distinguir um do outro. Os empresários, se existem, funcionam mais como empregados do governo.

Há escassez de alimentos para a maioria da população. Embora a autora não estabeleça essa ligação, essa escassez é um fato que podemos atribuir à forte intervenção do governo na economia e a consequente falta de competição entre empresas e de corporações suficientes e de qualidade para atender à demanda. Aliás, as pessoas não tem muita opção de emprego e boa parte é obrigada a trabalhar na especialidade de seu distrito.

Não é permitido que as pessoas de um distrito viajem até outro distrito, a não ser quando à mando da Capital. Se não podem transitar livremente dentro do próprio país, certamente não podem sair dele, o que nos lembra Cuba, Coreia do Norte e etc.

A população não tem acesso às armas de fogo. Os únicos portadores de armas de fogo são os chamados "Pacificadores", exércitos centralizados da capital que são enviados para os distritos. Caçar em florestas é proibido (talvez para evitar fugas, motins ou a criação de armas).

A tecnologia em quase todos os distritos é bastante rústica. Não parece haver internet ou computadores pessoais às mãos do povo comum. As televisões são velhas e, até onde me lembro, não há menção a carros. Há um distrito que produz alta tecnologia. Mas toda a produção vai para a Capital.
Panem aparentemente já era totalitária há muitos anos quando sofreu uma revolta promovida por um dos distritos. Vencendo o levante, a Capital intensificou seu poder totalitário e passou a utilizar ainda mais o poder do medo. Além disso, parece ter adotado um discurso de que outro levante seria ruim para todos, que a Capital sabe o que faz, que ela reergueu um país das cinzas e vem sustentando a todos, que a ordem é importante para manter a paz e etc. Esse discurso está presente em alguns vários pontos da trilogia, mas de modo velado.

Há um presidente em Panem. E ele está na presidência há pelo menos mais de 25 anos. Digo pelo menos 25 anos porque a trilogia menciona que ele era o presidente 25 anos antes do tempo em que a história se passa. Mas pelas descrições dos livros, eu estimaria que Snow, o presidente, já estava há uns 40 anos de poder.

Para o presidente, seus aliados e os cidadãos da Capital existe todo o conforto e riqueza. Já nos distritos, até mesmo a classe política tem seus problemas. Os prefeitos, por exemplo, também não podem viajar para a Capital (e, presumivelmente, também não podem deixar o país). E seus filhos não estão livres de participarem dos Jogos Vorazes, que ocorrem todos os anos.

Os Jogos Vorazes foram criados após o levante já mencionado, como uma maneira de relembrar ano após ano como a Capital tem domínio sobre os distritos. Nesses Jogos, eram selecionados, por sorteio, um representante feminino e um masculino e cada distrito, de 12 a 18 anos. Eles iam para a Capital, eram colocados em uma arena gigante e tinham que achar modos de sobreviver durante dias e matar uns aos outros. O último sobrevivente era o campeão dos jogos e podia voltar para casa.

Finalmente, a trilogia praticamente não faz menção a Deus. Se não me engano só encontrei a palavra "Deus" duas vezes, em frases onde era apenas força de expressão. Não sei se é assim no original, em inglês. Seja como for, não há mesmo menção a Deus como crença, nem a qualquer religião, rito religioso, igrejas e etc. Nada. É como se toda e qualquer crença em Deus ou deuses ou algo além do mundo natural tivessem sido arrancadas da cultura e da mentalidade das pessoas. 

É claro que a autora pode não ter colocado nada disso por não ser uma pessoa religiosa. Mas é impossível não pensar que essa ausência foi proposital. O mundo descrito pela autora Suzanne Collins está em um futuro pós-apocaliptico, onde guerras, fomes e desastres naturais reduziram significantemente a população e o mundo avançou séculos no tempo, deixando para trás quase tudo o que conhecemos hoje. É plausível supor que ela tenha retirado também a religião, a fim de pintar um mundo ainda mais distante no tempo e (por que não?) muito mais sombrio.

E, neste caso, também é inevitável relacionar essa descrença ao regime político de Panem e, mais profundamente, às mentalidades que conduziram a antiga América do Norte ao regime de Panem.

O que é notável em tudo isso é que a história fictícia de Collins é tremendamente verossímil. Quantos movimentos revolucionários não vimos desabrochar desde a revolução francesa pregando um Estado que intervém "em prol" da justiça social, a ascenção de uma classe revolucionária iluminada, o Estado como salvador do mundo, a centralização política, a estatização das empresas e setores mais importantes e a neutralização da concorrência? E o que esses movimentos geraram? Regimes totalitários, genocídios, miséria, violação dos direitos humanos, repressão, tortura.

E quantos movimentos revolucionários não vimos desabrochar pregando a doutrinação das crianças pelo Estado, a destruição da moral judaico-cristã, da ideia de verdades absolutas, da rica cultura religiosa, da espiritualidade, de Deus? E o que esses movimentos geraram? Mais maldade, mais devassidão, mais perseguição, mais seres não-pensantes, mais marionetes revolucionárias.

Mas eu não vou falar aqui apenas de socialistas. O mundo não é destruído apenas por eles. O capitalismo, embora eu o considere um bom sistema (dentro das limitações desse mundo imperfeito) e infinitamente preferível a qualquer tipo de socialismo, não passa de um sistema econômico. Ele não pode ser usado como um sistema que abarque toda a verdade moral/cultural/espiritual da sociedade. Quando fazemos isso, criamos um sistema frio, egoísta, desumano. Nós não nos resumimos à economia. Por isso, não podemos apenas ser capitalistas. O capitalismo por si só, sem uma boa base moral/cultural/espiritual pode se tornar um monstro quase tão perverso e destrutivo quanto os mais diversos socialismos.

No fim das contas, o que parece ficar claro aqui é que o problema maior não está nos sistemas, mas na tendência humana de querer colocar suas ideias, interpretações e vontades pessoais acima de Deus. O ser humano, religioso ou não, passou a história inteira fazendo-se Deus para si mesmo, ora alegando fazer a vontade divina, ora alegando fazer a vontade do povo, ora fazendo imperar sua vontade sem qualquer tentativa de justificar seus atos ("Eu fiz porque eu quis"). Ignorando ou distorcendo uma moral básica deixada por Deus no sistema biológico do homem e perpetrada por heranças sociais (moral a qual todo homem mentalmente são é capaz de discernir), nossa espécie tem causado os mais terríveis sofrimentos ao próximo. E assim vamos destruindo o mundo e a nossa espécie.

O mundo descrito por Collins não é uma impossibilidade. Ao contrário, ele o destino do homem. É para a completa destruição que seguimos, enredados em nossos egoísmos e crueldades, ou mesmo, em nossa ridícula empáfia de achar que podemos salvar o mundo. Não, não podemos. Temos dificuldades de arrumar o nosso quarto, de lavar a louça, de resistir à tentação de xingar o motorista que nos cortou no trânsito, de não mentir para nossos pais ou nosso parceiro, de não explodir de raiva com quem amamos, de não querer vingança de quem nos fez mal.

Quando vejo alguém querendo mudar o mundo, sempre me lembro de um anime que gosto muito chamado "Death Note" (Livro da Morte). No anime alguns seres presentes na mitologia japonesa, os Shinigamis, possuem cada um dois livros da morte. Assinando o nome de uma pessoa nesses livros e mentalizando sua face, eles conseguem matá-la, da maneira como descreverem sua morte. E os anos de vida que a pessoa teria passam para eles.

A história do anime tem inicio quando um Shinigami entediado deixa cair propositalmente um de seus Death Notes na terra para que algum ser humano o ache. O caderno é achado pelo estudante Yagami Light, um gênio que sonhava em transformar o mundo em um lugar pacífico, sem mais crimes e injustiças. Light logo descobre que o caderno funciona e passa a arquitetar um inteligente plano para assassinar criminosos sem que a polícia desconfie dele. Mas logo a polícia descobre um padrão nas mortes e contrata o maior detetive o mundo para investigá-las, a fim de chegar ao autor.

O anime, então, passa a mostrar um delicioso embate intelectual entre Light e o detetive, o primeiro para despistá-lo e o segundo para chegar ao autor dos crimes. Mas o interessante é que Light, com a polícia e o detetive em seu encalço, começa a matar todos os que se tornam um problema para os seus planos de transformação do mundo, incluindo inocentes, chegando a cogitar até a morte de seus familiares. Ele se torna obcecado com seus planos, começa a dizer para si mesmo que ele é a própria justiça e afirma que será o Deus do novo mundo. Tudo então passa a ser permitido a ele por ele mesmo em prol de seu plano supremo. Numa das falas do detetive (chamado simplesmente de "L" na série) que mais gosto, ele afirma: "Estou caçando uma pessoa sem nome ou um rosto. Alguém que acredita estar no caminho certo para livrar o mundo dos criminosos. Mas sua justiça está mal guiada. Pois agindo como Deus, ele mesmo se tornou o criminoso".

Não é preciso ter uma intenção ruim para tornar a vida de outras pessoas um inferno. É quando entendemos isso e como este fato já ocorreu tantas vezes na vida real, que entendemos como qualquer crença que nutramos na capacidade do homem de se tornar perfeito e mudar o mundo é tola e perigosa. O máximo que podemos conseguir é algumas áreas do globo relativamente mais justas e pacíficas. Mas nunca o mundo inteiro. Nunca todos os homens. Nem sequer próximo disso. Podemos até melhorar as coisas, mas jamais na amplitude que gostaríamos. Podemos até consertar um pouco a nós mesmos e a algumas pessoas em nosso redor. Entretanto, jamais mudaremos bilhões de pessoas.

É aqui que nos deparamos com o dura, porém verdadeira realidade descrita por Suzanne Collins: nossa vida é frágil e nosso mundo é mal. São dois fatos dos quais não se pode fugir e os quais não se pode mudar. Apenas devemos aprender a conviver com eles. A diferença básica entre os personagens de Collins e eu é que eles estão pendentes no abismo (ou, pelo menos, parecem estar), desprovidos de qualquer sentido último para toda a vida. Afogados na lama de nossa existência torta, sanguinária, vazia e efêmera; vendo todo o seu interior desabar quando um ente querido morre; sufocando no medo; perdendo o senso de realidade; buscando tapear o sofrimento com o efêmero. Eles não tem Deus. Eu o tenho.

Isso não é uma tentativa de argumentar emocionalmente pela existência de Deus. Tenho outros motivos racionais para crer. Mas é uma forma de mostrar ao leitor como a questão não é irrelevante e como esse mundo sem esperança, afundado na crueldade humana e na certeza de plena destruição, tem sido evitado tanto por crentes, como por descrentes em Deus. Minha aposta é que definitivamente não fomos feitos para isso.

A trilogia de Collins, que creio não ter sido feita com este intuito, me levou a pensar melhor nestas coisas, além de ter me proporcionado um bom enredo. Fica aqui o meu agradecimento de leitor.

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