domingo, 20 de setembro de 2015

Sobre o marxismo heterodoxo (ou: o que alguns pretensos estudantes de história ignoram)

Quando um conservador diz que ainda existe socialismo marxista hoje, sempre aparece algum sujeito para dizer: "Vá estudar história!", como se o conservador estivesse dizendo uma grande baboseira do ponto de vista historiográfico e como se ele, o sujeito a proferir a imperativa frase, fosse um expert. É compreensível essa postura. Afinal, esses indivíduos acreditam que só existe um único marxismo: o marxismo ortodoxo. Mas por que pensam isso?

Pensam isso porque nunca leram obras como "Marxism, Fascism and Totalitarianism: Chapters in the Intellectual History of Radicalism", de Antony James Gregor, que explora o conceito de marxismo heterodoxo.

Pensam isso porque desconhecem as ideias de Georges Eugene Sorel, marxista heterodoxo que fundou as bases do chamado sindicalismo revolucionário. Entre suas ideias se encontra o conceito de exploração dos mitos políticos como força motriz para mobilizar o povo. Seu movimento influenciaria o pensamento de grandes ideólogos marxistas (como Antonio Gramsci, Walter Benjamin e José Carlos Mariategui) e também de Benito Mussolini, o qual, fora marxista ortodoxo durante muitos anos.

Pensam isso porque não tomaram conhecimento das bases da social-democracia e do trabalhismo, que pretendiam alcançar o socialismo através de reformas graduais dentro do próprio capitalismo.

Pensam isso porque não leram as obras do teórico marxista Antonio Gramsci, ou dos teóricos marxistas da Escola de Frankfurt, que fizeram releituras do marxismo, criaram novas estratégias e abordaram a necessidade do combate cultural para a tomada de poder pelos partidos socialistas.

Pensam isso porque não chegaram a estudar sobre a falibilidade prática de sistemas econômicos totalmente estatizados e as consequentes concessões feitas ao setor privado pelos dirigentes comunistas, a fim de conseguirem manter a economia de seus Estados. Não estudaram isso, tampouco estudaram que estes fatos já eram previstos e explicados, em parte, pelos estudos do economista Ludwig von Mises (na década de 1920) a respeito do cálculo econômico em sistemas socialistas. Esses estudos, aliás, continuaram sendo feitos pelo economista Friedrich Hayek, ganhador do Nobel de Economia em 1974 e autor do clássico livro "O Caminho da Servidão", no qual explica com clareza porque o crescente controle da economia pelo Estado leva a sistemas políticos totalitários.

Pensam isso porque eles ignoram que a falibilidade do modelo econômico socialista contribuiu para reformulações na teoria marxista e a adoção de estratégias mais pragmáticas e gradualistas por parte dos novos pensadores e políticos marxistas.

Pensam isso porque não prestaram sequer atenção ao próprio "Manifesto do Partido Comunista", em que Marx e Engels demonstram, no final, que em todos os países os comunistas estavam dispostos a colaborar até mesmo com capitalistas, se isso se mostrasse efetivo para os planos do partido no futuro. Ali estava a gênese do pragmatismo marxista e do surgimento de marxismos heterodoxos.

Acreditam esses indivíduos que nos mandam estudar história que o comunismo acabou juntamente com a URSS e que, de um dia para o outro, como num passe de mágica, marxistas de todo o mundo se conformaram com o capitalismo, abandonaram todas as ligações com as ideias de Karl Marx e deixaram de lado qualquer pretensão de mudar o mundo. Esquecem-se (ou ignoram propositalmente) que os principais conceitos marxistas continuam sendo ensinados amplamente, como é o caso da luta de classes, da mais-valia, do materialismo dialético, do materialismo histórico, da sociedade dividida em superestrutura e infraestrutura, da religião como ópio do povo, da capacidade do ser humano de remodelar o mundo, do Estado como ferramenta para implementar as políticas da revolução proletária, do forte controle da economia pelo Estado e da centralização do poder nas mãos do proletariado (representados pelo Partido).

Os simples fatos de (1) não se falar mais em estatização completa da economia, (2) tolerar a existência de empresas privadas e (3) deixar de lado a utilização do mito de um estágio final do socialismo onde o Estado é superado, é entendido por esses sujeitos como prova irrefutável de que o socialismo marxista não existe mais. Tolice. O que isso na verdade mostra é que marxistas compreenderam que a estatização completa da economia é inviável e, ao mesmo tempo, desnecessária. Para quê estatizar tudo se o Estado pode controlar empresas privadas através de regulamentações, altos impostos, troca de favores com grandes empresas, proteção de cartéis, oposição ao livre mercado e grande poder de intervenção na economia? Para quê estatizar tudo se o Estado pode estatizar (ou manter estatizado) apenas aquilo que julgar mais importante? Para quê o Estado terá o trabalho de administrar tanta coisa, se é possível delegar essa função à empresas privadas sem prejuízo algum de seu plano de poder? Para quê estatizar tudo se o Estado pode contar com a existência de empresas privadas para resolver os problemas econômicos causados por sua ineficiência e corrupção?

Não é preciso estatizar tudo para conquistar o controle político e econômico que marxistas almejam para, supostamente, tornar a sociedade mais justa e igualitária. E isso, por mais heterodoxo que possa soar, encontra sua gênese no "Manifesto do Partido Comunista". Lá Marx e Engels já falavam sobre o gradualismo. O controle político e econômico do Estado seria conquistado aos poucos. As empresas privadas não seriam todas destruídas ao mesmo tempo, mas conviveriam com o governo socialista por período indeterminado, sendo cada vez mais controladas pelo Estado e reduzidas em número, até que tudo passasse diretamente para as mãos dos dirigentes estatais. A diferença entre o marxista ortodoxo e o heterodoxo aqui é que o primeiro vê o controle direto do Estado sobre as empresas como uma necessidade, ao passo que o último crê que é possível e conveniente que parte do controle sobre as empresas seja indireto. Em outras palavras, é possível fazer uso do capital privado para benefício do Estado e da manutenção do poder.

Quando voltamos a Gramsci e lemos sobre suas estratégias para a manutenção do Partido no poder (inclusive dizendo que o Partido é o novo Princípe, de Maquiavel) e a transformação gradual da mentalidade do proletariado através da cultura, confirmamos o parágrafo acima e percebemos que o socialismo marxista ainda existe e tem sido implementado por diversos partidos, embora por meios mais gradualistas, pragmáticos e aparentemente despretensiosos. Uma vez que os sujeitos dos quais falamos nesse texto, não admitem a existência de heterodoxia no marxismo, zombam dos conservadores e olham para governos de orientação socialista como se não o fossem. O resultado se verá à longo prazo. Economias cada vez menos livres, crises econômicas e governos com poderes despóticos. Temos visto prévias desse cenário na Venezuela, na Bolívia, na Argentina e no próprio Brasil.

Obs.: O leitor mais atento certamente percebeu que as semelhanças entre o fascismo italiano de Benito Mussolini e o marxismo heterodoxo. Na verdade, é exatamente isso. O fascismo italiano é um tipo de marxismo heterodoxo. Suas raízes estão fincadas nas ideias do sindicalismo revolucionário de Sorel, que serviu de inspiração para que Mussolini remodelasse o marxismo que seguia. Mussolini percebeu o que os marxistas perceberiam em massa após a falência da URSS: que não era necessário estatizar toda a economia, destruir as empresas privadas e utilizar o mito do fim do Estado após a ditadura do proletariado. A diferença entre Mussolini e os marxistas heterodoxos atuais reside na escolha dos mitos políticos para empurrar o povo. O Duce italiano utilizou-se do nacionalismo e da guerra. 

Algumas das obras que dão conta desta análise são: "Revolutionary Fascism", de Erik Norling; "The birth of fascist ideology”, de Zeev Sternhell, Mario Sznajder e Maia Asheri; e o já citado "Marxism, Fascism and Totalitarianism: Chapters in the Intellectual History of Radicalism", de Antony James Gregor. Deixo como indicação alguns artigos sobre o tema:

Quando o Fascismo era de Esquerda
Tudo que você deveria saber sobre o Fascismo, mas não quer 
O Fascismo nasce da Esquerda
Fascismo do Século XXI
O nazismo e o fascismo eram movimentos conservadores políticos?

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